9.2.10

O profano e o sagrado

"E Jesus, clamando outra vez com grande voz, rendeu o espírito. E eis que o véu do templo se rasgou em dois, de alto a baixo" Mateus 27:50-51

Não sei se isto faz algum sentido para vocês, mas houve uma fase da minha vida em que eu era dominado pela ideia absurda de que referir Deus e referir um assunto corriqueiro na mesma frase seria uma espécie de heresia. Guiava os meus pensamentos em duas estradas paralelas, não deixando que elas se intersectassem: uma para discorrer sobre Deus e sobre a fé e outra para todos os outros assuntos.

Tinha uma tendência para isolar o divino numa espécie de redoma que tentava preservar longe da contaminação das coisas banais da vida. Criei um compartimento inacessível e arrumei lá cuidadosamente tudo aquilo que dizia respeito à minha fé, não dando conta que esse compartimento, criado com um pudor tão exagerado e, até, disparatado, se tornou também inacessível a mim próprio. Tentava aceder a esse compartimento criando uma auto-imagem melhorada daquilo que eu era na realidade. Fingia uma santidade absoluta que não é real (porque a santidade é muito mais um caminho do que um estado), simulava incorruptibilidade, usava máscaras e artimanhas, vestia a pele dos fariseus que Jesus tanta vez criticou, e não dava conta que, agindo assim, estava a enganar-me a mim próprio.

Hoje percebo que separar Deus do resto da minha vivência não só é desnecessário, como é mesmo prejudicial. Deus não se quer relacionar com cópias melhoradas de nós próprios. Ele quer relacionar-se connosco tal como somos, por mais fúteis, patetas e incoerentes que sejamos.

O David que acredita que Jesus é a resposta para a maior ansiedade e necessidade do homem é o mesmo que é adepto do Benfica; é o mesmo que gosta de acompanhar de longe a vida política e de criar piadas sobre a incompetência dos políticos; é o mesmo que dança ao som de Jamiroquai e adormece ao som da Norah Jones; é o mesmo que gosta de uma cerveja fresca numa esplanada sob o entardecer de um dia de verão (enquanto se conversa sobre o amor de Deus, porque não?), é o mesmo que às vezes solta uma gargalhada quando Os Contemporâneos fazem humor que envolve a Bíblia, é o mesmo que tem períodos de desalento que o levam a questionar até mesmo aquilo que é inquestionável, é o mesmo que por vezes é atormentado pela dúvida sobre o certo e o errado, é o mesmo que, ainda que pretendendo servir os outros e viver uma vida altruísta, é levado com frequência a atitudes egocêntricas... e é o mesmo que Deus ama "furiosamente"!

A separação entre o sagrado e o profano é uma herança de outros tempos e de outras mentalidades. Uma herança de uma religiosidade beata que exclui a beleza da graça. A graça é bela porque é oferecida a homens e mulheres reais, autênticos, humanos, que se emocionam, que são incoerentes, às vezes fúteis, às vezes despropositados... como eu.

Mais uma vez digo: não sei se isto faz sentido para vocês. Temo que não tenha conseguido alinhar estas ideias de modo a dar-lhes algum nexo e torná-las perceptíveis. Mas eu sei o que estou a tentar transmitir e é algo que para mim é muito, mesmo muito, pertinente. Talvez faça um remake ou uma segunda parte deste texto brevemente.


adaptado de um texto escrito originalmente em Julho de 2009 para o meu antigo blogue e parcialmente inspirado numa frase bombástica do Blue Like Jazz, quando uma amiga de Don Miller lhe estava a contar como aconteceu a sua conversão a Cristo: "We would eat chocolates and smoke cigarettes and read the Bible, which is the only way to do it if you ask me. Don, the Bible is so good with chocolates."

1 comentário:

Rev Carlos Ferreura disse...

Quando quiseres serás muito bem vindo aqui em Boston na Assembleia de Deus Aliança. Podes vir como membro com plenos direitos e deveres. Todos aqui pensamos da mesma maneira, tirando a parte da cervejinha. Abraço do Pr.Carlos Ferreira, teu amigo.