1.12.10

That's it

Parecem já distantes aqueles anos em que eu devorava os livros que a minha mãe herdou do seu tempo de jovem. Livros que contam relatos de vidas transformadas por Deus. Vidas transformadas porque pessoas comuns se disponibilizaram para serem instrumentos do amor de Deus ao serviço dos outros. Livros que eu lia até altas horas da madrugada num misto de temor e de lágrimas. Lágrimas que teimavam cair sem que eu compreenda porquê. Conheço bem essas lágrimas. Acompanhadas de uma torrente de emoções que me invade sempre que leio ou ouço este género de relatos. Não as sei explicar. É como se no meu íntimo eu soubesse que ali, naqueles relatos, reside o propósito da vida: sermos transformados e sermos usados para transformar outros. É como se aqueles relatos fossem a prova do poder fantástico que a graça de Deus tem ainda hoje. É como se eu soubesse que não há nada mais bonito e mais maravilhoso do que uma pessoa atingida por esta graça extraordinária. É como se eu soubesse que eu careço dessa graça mais do que de qualquer outra coisa. Mas tudo isto ficava guardado algures nos lugares inacessíveis do meu coração sem que eu o conseguisse verbalizar, até porque naquela altura eu não conhecia o conceito de 'graça'. Nem o conceito nem a graça propriamente dita.

Eu tinha acabado de sair da infância, a idade da inocência e das colecções de livros de aventuras. Começar a ler as tais relíquias da minha mãe foi, de certa forma, um choque. Não era fácil digerir todos aqueles relatos e na altura eu era demasiado tímido para partilhar as dúvidas e a perturbação que eles causavam. De qualquer forma acredito que estes livros alisaram o terreno para construir os alicerces da minha fé.

Mas essa construção não foi um processo nada linear. O Deus que eu conheci na minha adolescência estava amarrado a uma série de regras. O Jesus que eu conheci era uma figura quase éterea, um salvador distante que parecia ter pouco a dizer acerca da vida dos homens de carne e osso. Já disse isto muitas vezes: é provável que não seja justo atribuir culpa a quem quer que seja; é provável que eu tenha tido bons amigos e bons professores que me falaram no Deus de amor e na sua graça. É bastante provável que eu é que tenha sido um mau aluno. Um aluno cujo discernimento estava toldado por pensamentos contraditórios, por conflitos profundos que se avolumavam à medida que eu atravessava os anos turbulentos da adolescência, com tudo o que esses anos implicam.

Desde criança senti uma necessidade profunda de redenção para os meus erros, mas uma redenção que fosse exterior a mim próprio. Uma redenção que não dependesse de uma pessoa tão falível e tão frágil como eu. Jesus oferece essa redenção e, porque ela faz todo o sentido na minha vida, nunca me senti tentado a abandonar totalmente a fé. Mas durante a minha adolescência concebi uma imagem de Deus extremamente limitada, uma cosmovisão extremamente pobre e contraditória e uma vida que raramente correspondia à promessa de vida abundante que Jesus faz. Por isso a minha fé era constantemente abalada.

As doutrinas que aprendi pareciam-me inúteis e incompreensíveis. O "meu" cristianismo, profundamente afectado pelo legalismo, parecia-me uma prisão. Era uma espécie de "código da estrada" cinzento e tristonho. As escolhas que fiz muitas vezes não foram as melhores e isso também contribuiu para o avolumar da confusão. Ainda por cima, a minha timidez adensou-se e obrigou-me a guardar as minhas batalhas mentais para mim próprio.

Mesmo assim fui conhecendo pessoas que me ajudaram a manter a esperança. Ajudaram-me a acreditar que havia algo mais... Já na faculdade, sobretudo depois dos 20 anos, iniciei uma busca por respostas satisfatórias. Uma procura de sentido para a vida cristã que eu tinha abraçado desde criança, mas que me parecia agora muito incoerente. Lentamente essas respostas começaram a surgir. Foi um processo doloroso e angustiante. Mas acredito que foi um processo supervisionado por Deus.

Este blogue foi sempre uma tentativa de registar as batalhas que travei na minha mente dificílima de acalmar e as conclusões a que cheguei. Nunca foi uma tentativa de vos convencer de que as minhas conclusões eram acertadas. Foi antes uma tentativa de me convencer a mim próprio. Foi uma espécie de diário de bordo da viagem que fiz durante estes anos. Uma viagem penosa, como escalar uma montanha íngreme. Mas isso agora já não tem importância porque no topo da montanha a vista é deslumbrante.

Há uns dias estava a falar com um amigo e disse-lhe que passei os últimos anos a construir a minha própria teologia sistemática. Isto pode parecer presunção e eu reconheço que, em rigor, é uma afirmação imprecisa. Os meus conhecimentos de teologia continuam a ser elementares. Mas é verdade que durante estes anos abri mão de doutrinas e preconceitos e passei a apoiar a minha fé em princípios teológicos que assentam na graça e que dão muito mais sentido à minha vida. E o que é fixe é que estes princípios teológicos têm efeitos práticos, apontam para um caminho fascinante e têm pouco ou nada a ver com o "código da estrada" com o qual eu confudia o cristianismo.

Durante os últimos anos, sobretudo os últimos dois anos, fiz descobertas estonteantes. Descobri que Deus me ama. Mesmo! Descobri que a Bíblia é muito mais rica do que eu julgava. Descobri que as coisas que Jesus disse foram dirigidas a humanos de carne e osso e têm aplicação nas nossas vidas. Construí uma cosmovisão - uma forma de responder às grandes questões sobre a vida e sobre o mundo à nossa volta - muito mais rica e colorida. Reaprendi a orar, a falar com Deus, a expôr-me diante dele sem medo. E percebi também que nunca vou ter respostas para todas as perguntas. Percebi que Deus tem mistérios inescrutáveis que a minha mente limitada nunca vai conseguir resolver. E é aí que entra a fé, um elemento essencial da vida cristã.

Não posso prever o futuro e sei que continuo a ser extremamente falível. Sei que ainda há muitas montanhas por escalar. Mas sei também que não quero abrir mão do cristianismo radical que encontrei nos últimos anos. Encontrei um Jesus revolucionário, desconcertante e apaixonante que deu a volta e continua a dar a volta ao meu coração. E é assim que tem que ser. Não quero nada menos do que isto. Quero que Jesus continue a parecer-me revolucionário durante toda a minha vida. Quero sentir-me continuamente desafiado por Ele. Desafiado para questionar o mundo, para me questionar a mim próprio, para não cair no conformismo. Desafiado para fazer da minha vida uma história bonita. Durante demasiado tempo encarei a vida como uma luta dura. Hoje, depois de chegar ao topo desta montanha, encaro a vida como uma luta bonita. Não deixa de ser uma luta. Uma luta contra o meu egocentrismo e contra as minhas tendências comodistas. Mas é uma luta bonita quando travada sob a orientação e a luz de um Deus que é especialista em criar coisas bonitas!

É provável que não volte a escrever neste blogue porque me parece que este é um capítulo encerrado. Mas é possível que um destes dias volte a ter tempo para escrever algures por aí, porque o bichinho da escrita continua bem vivo.

Por agora, é tempo de arregaçar as mangas e de mergulhar de cabeça nesta luta bonita.

«My faith was torn to shreds
Heart in the balance
And You were there

Always faithful, always good
You still have me
You still have my heart»