16.1.10

Acerca do sentido de urgência e do extremismo

Época de exames.
Acordar cedo, tomar um duche rápido, emborcar uma chávena de café e correr para o comboio. Todos os segundos contam e a viagem de comboio é uma excelente ocasião para rever os apontamentos ou para repensar um exercício que ficou mal resolvido na véspera.
Na biblioteca da faculdade já trabalha o grupo de colegas do costume. Dividimo-nos por duas ou três mesas, espalhamos os calhamaços, as sebentas, e as fotocópias dos exercícios e exames resolvidos, fornecidos por veteranos, já com manchas de bolor e sujidade.
O estudo começa de imediato e estende-se pelo dia fora. Nos momentos de pausa para almoçar, lanchar ou beber mais um café, a conversa viaja um pouco mas retorna sempre ao ponto de partida: o estudo, as dificuldades impostas pela matéria, os temidos exames...
Ao fim da tarde, o regresso a casa. Se o sono permitir, os minutos da viagem são outra vez investidos no estudo. Mas se o peso das pálpebras for insuportável, deixo-me cochilar um pouco, recuperando alguma frescura mental que fará falta mais tarde.
O jantar é engolido num ápice. Aguardam-me mais exercícios, mais uma ou duas horas de estudo. Ao fim do dia, para equilibrar a sanidade e relaxar a mente, permito-me algum tempo de distracção. Entrego-me a tarefas pouco exigentes até o sono atacar de um modo irresistível.
Amanhã há outro dia igual. A não ser que seja fim-de-semana. No fim-de-semana o estudo também é a prioridade, mas arranja-se sempre tempo para actividades que quebram a rotina. As manhãs de sábado são reservadas para as futeboladas com os amigos do costume. Para além do desporto, há sempre oportunidade para conversar, contar piadas e mandar bocas saudáveis uns aos outros. Aos domingos não dispenso a ida à igreja. Mas invariavelmente, mesmo que me envolva noutras actividades, no meu pensamento pairam os exames. É um sentimento de urgência constante que me leva a considerar o estudo inadiável e prioritário.
Urgência, a palavra que melhor caracteriza a época de exames.



Agora dou por mim a recordar a forma como vivia a época de exames e a questionar-me se devo ou não encarar cada dia da vida como um dia de época de exames. Se devo ou não alimentar o sentido de urgência. Ou, mais até do que alimentá-lo, se devo ou não entregar-me a ele, tornar-me refém dele. Perguntam vocês o que será assim tão urgente que justifique viver sob esse "stress"? É urgente ser mais parecido com a pessoa que eu sei que devo ser, é urgente levantar a voz para protestar contra a injustiça, é urgente abraçar aqueles que precisam de consolo, é urgente transmitir aos outros, seja através de actos seja através de palavras, a graça do Pai, é urgente...

Continuo a procurar uma resposta clara, mas inclino-me mais para a resposta afirmativa. O cristianismo não devia ser vivido a meio gás. Abraçamos apenas metade da mensagem cristã - aquela que nos convém - e continuamos a viver confortavelmente a nossa vida, enquanto à nossa voltas as pessoas se afundam no caos e no desespero. Sei que não devo viver assim. Devo lutar contra a procrastinação - esse defeito dos portugueses que todos somos céleres a apontar e a criticar, mas desconfio que no fundo até nos orgulhamos dele e o acarinhamos como sendo um elemento da nossa cultura, da nossa identidade. Devo lutar contra o comodismo - é mais fácil ficar sentado no sofá do comodismo a assistir ao desenrolar da vida, sem sujar as mãos, sem arregaçar as mangas. Mas a facilidade não devia ser nem por sombras o meu objectivo, a minha motivação. O caminho que Jesus Cristo nos veio propor não é um caminho fácil. É um caminho de luta e de negação. "Se algum de vocês quer ser meu seguidor, deve esquecer-se de si mesmo, tomar a sua cruz e seguir-me."Marcos 8:34

Sim, é urgente ser cristão. É urgente sermos cristãos extremistas. Não um extremismo que nos conduza ao fanatismo e à intolerância, mas um extremismo que nos leve a ser mais parecidos com Cristo. Foi esse extremismo que levou Paulo a dizer: "Eu estou crucificado com Cristo; e apesar de continuar a viver, já não é o meu eu que domina, mas é Cristo quem vive em mim." Gálatas 2:20

Termino com um excerto de uma carta escrita por Martin Luther King quando esteve preso, a famosa Letter from Birmingham Jail:

«Was not Jesus an extremist for love? "Love your enemies, bless them that curse you, pray for them that despitefully use you." Was not Amos an extremist for justice? "Let justice roll down like waters and righteousness like a mighty stream." Was not Paul an extremist for the gospel of Jesus Christ? "I bear in my body the marks of the Lord Jesus." Was not Martin Luther an extremist? "Here I stand; I can do none other so help me God." Was not John Bunyan an extremist? "I will stay in jail to the end of my days before I make a butchery of my conscience." Was not Abraham Lincoln an extremist? "This nation cannot survive half slave and half free." Was not Thomas Jefferson an extremist? "We hold these truths to be self-evident, that all men are created equal." So the question is not whether we will be extremist but what kind of extremist will we be. Will we be extremists for hate or will we be extremists for love? Will we be extremists for the preservation of injustice or will we be extremists for the cause of justice? In that dramatic scene on Calvary's hill, three men were crucified. We must not forget that all three were crucified for the same crime - the crime of extremism. Two were extremists for immorality, and thusly fell below their environment. The other, Jesus Christ, was an extremist for love, truth and goodness, and thereby rose above his environment.»


E, depois de meditar e escrever estas linhas, esta é a minha oração:

Pai,
peço-te que me dês força para carregar a minha cruz. Que o sopro do comodismo não apague a chama que arde em mim e que me impele a viver para Ti. Que os passos que dou enquanto Te sigo não sejam hesitantes, medrosos, próprios de uma pessoa contrariada, mas que sejam urgentes, apaixonados, abnegados. Sabendo que cada passo que tenho que dar e cada batalha que travo comigo próprio, é mais urgente do que qualquer exame universitário.
Ensina-me a abraçar e a amar a justiça com todo o meu coração. Ensina-me a caminhar no caminho do extremismo, o extremismo do amor e da graça. Até porque senão fosse pela Tua graça extrema, eu estaria condenado...
Amén

2 comentários:

Bianca disse...

Obrigada!

O post é mesmo inspirador...no fim apeteceu-me dizer Amén em uníssono com todos os cristãos que querem urgentemente ser parecidos com Cristo!

David disse...

Obrigado eu pela visita. Que bom seria que mais cristãos quisessem mesmo dizer esse Amén em uníssono!